Aos 63 anos, a desembargadora Maria Zuíla Lima Dutra ainda se lembra de quando, muito pequena, vendia merenda em fábricas e apanhava pedra das pedreiras de Santarém, no Pará, para ajudar a mãe. Mas não se lembra quantos anos tinha. Cinco anos? Talvez menos, diz.
“Eu era muito pequena. Não tenho lembrança de algum período da minha infância em que eu não estivesse trabalhando.”
A família de Zuíla era muito pobre. A mãe, analfabeta, criava sozinha os cinco filhos. Estudar exigia força de vontade: a menina estava sempre cansada de acordar de madrugada e, sem luz elétrica em casa, a lamparina cansava ainda mais os olhos. Zuíla pedia às colegas os restos dos cadernos delas e, com as folhas ainda em branco, sua madrinha costurava cadernos para que ela pudesse estudar.
Vendedora de merenda, trabalhadora de pedreira, a menina seguiu arrancando pedras no meio do caminho e se transformou em referência na luta contra o trabalho infantil no Pará e no Brasil.
Foi telefonista, professora de matemática, funcionária do Banco do Brasil, cursou Direito, virou juíza do Trabalho em 1995 e em maio deste ano tomou posse como desembargadora do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região (Pará e Amapá).
‘Filhas de criação’
Sua dissertação de mestrado, defendida em 2006 na Universidade Federal do Pará e publicada em livro no ano seguinte, analisa as trajetórias de meninas saídas do interior paraense para trabalhar na casa de terceiros em Belém.
São as chamadas “filhas de criação” – um eufemismo para disfarçar o que a desembargadora, na vida, na academia e na prática profissional, constatou ser a exploração sem limites de uma mão de obra jovem e barata.
Em entrevista à BBC Brasil por e-mail e telefone, Zuíla Dutra relembrou sua trajetória e analisou a persistência do trabalho infantil doméstico no Brasil (apesar da queda verificada nos últimos anos).
“Muitas vezes, nas audiências, os empregadores negavam veementemente a relação de trabalho, alegando tratar-se de ‘filha de criação’. Mas as provas demonstravam claramente a existência de autêntico vínculo laboral (relação de trabalho) e, mais ainda, de superexploração de trabalho. Esse tipo de explorador de mão de obra doméstica utiliza a expressão ‘filha de criação’ como substitutivo para ‘trabalho escravo’, ‘trabalho servil’ e outros assemelhados”, afirma ela.
Rotina de exploração
A história de Zuíla passa por um barraco sem luz nem água em Santarém.
“Éramos muito pobres. Minha mãe, Oscarina, criou os cinco filhos sozinha. Analfabeta, não tinha profissão definida, lavava roupa, fazia todo tipo de serviço. Morávamos de favor no fundo do quintal de uma fábrica de beneficiamento de látex, num canto sem água nem luz. Então consentiram que ela fizesse merenda para vender nas fábricas, e eu e meus irmãos vendíamos. Eu me lembro perfeitamente: um levava o tabuleiro com suco, outro os sanduíches”, conta a desembargadora.
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