“Brasília foi formada por dois tipos de pessoas: servidores públicos transferidos e aqueles que se aventuraram em busca de emprego na ideia da nova capital. Eu vim desse segundo grupo”, conta Jane Klébia do Nascimento Silva, 56 anos, titular da 6ª Delegacia de Polícia (Paranoá). Naturais da Bahia, os pais da investigadora chegaram ao Distrito Federal em 1960 e passaram a morar em Sobradinho. Após três anos, Jane nasceu. Porém, sem conseguir emprego, o pai dela decidiu abandonar a família e ir embora para São Paulo. “Ficamos eu — ainda com 3 meses —, minha mãe e meu irmão, de 2 anos”, lembra.
De origem pobre, Jane trilhou um caminho marcado pelo esforço para chegar a uma posição de chefia na Polícia Civil. Ao longo da vida, passou em 10 concursos públicos e exerceu diversos cargos no Distrito Federal, como secretária de Estado de Políticas para Crianças Adolescentes e Juventude, administradora de Sobradinho e chefe da controladoria jurídica da Companhia de Planejamento (Codeplan), além de concorrer para deputada distrital nas eleições de 2018. Hoje, encontrou paixão no trabalho na 6ª DP, onde se aproximou da sociedade, e tenta passar uma imagem de força e superação.
Na condição de mulher e negra, a história da investigadora, contudo, teve diversos episódios manchados por preconceitos, assunto que ela evitar detalhar. “O cargo de delegado de polícia ainda é elitizado. As pessoas imaginam um padrão da pessoa que assume essa função. Elas não conseguem imaginar e tratam como se fosse uma coisa impossível para uma mulher negra ocupar esse espaço”, frisa. Jane conta que viveu situações em que pessoas não a reconheceram como delegada, justamente por causa do gênero e da raça. Outra queixa da investigadora é referente ao distintivo, onde está escrito delegado no masculino. Este, segundo ela, é o único modelo disponível na corporação.
Dedicação
Após ser abandonada, a mãe de Jane passou a lutar por sobrevivência. Trabalhou como doméstica e costureira até conseguir se formar em enfermagem e começar a exercer a profissão. Com auxílio de um programa assistencial do governo, a mãe conquistou um lote em Sobradinho, lugar onde a delegada passou a maior parte da vida. Entretanto, ainda faltavam condições financeiras para cuidar da filha. Por isso, a policial precisou morar com a avó na Bahia e com um tio no Rio de Janeiro, que a trouxe de volta antes de completar 10 anos. “Com 9 anos, eu já era como uma dona de casa”, diz.
Jane estudou apenas em colégios públicos de Sobradinho: na Escola Classe 5, no Centro de Ensino 2 e no Centro de Ensino Médio 1, antigo ginásio. Durante o período, desenvolveu a paixão por esportes e passou a jogar na Seleção Brasília de Vôlei. Competiu em torneios fora do Distrito Federal, mas teve que interromper o sonho. “Precisava trabalhar. Naquela época, a sobrevivência falava mais alto.” Com 16 anos, virou atendente de uma papelaria e passou a estudar para enfermagem, por orientação da mãe.
Com 18 anos, Jane conseguiu um emprego na Pediatria do Hospital Regional de Sobradinho e, pouco tempo depois, na Oncologia do Hospital Universitário de Brasília (HUB). “Ver aquelas crianças nascendo e morrendo mudou minha maneira de pensar. Na Oncologia, era outro extremo. Passei a perceber como a humanidade era igual, independente de patrimônio e família. Aprendi a valorizar a vida”, ressalta. Aos 20 anos, a policial se casou, teve o primeiro filho aos 22 e o segundo nove meses depois. Porém, ainda insatisfeita, decidiu cursar geografia no UniCEUB.
Em 1992, já formada e após passar oito anos como enfermeira, Jane foi aprovada em um concurso na Secretaria de Educação e começou a dar aulas em Samambaia. “Tinha dois meninos de fralda, precisava trabalhar e estudar. Saía de casa às 5h para chegar na escola às 7h30.” Apesar da rotina pesada, a agora policial não abandonou os estudos e usava todo tempo livre, mesmo durante a madrugada, para mergulhar nos livros.
Após passar por escolas de Taguatinga e Fercal, ela chegou a Sobradinho e, depois, ao cargo de diretora do Sindicado dos Professores. Entretanto, inconformada com as dificuldades na carreira de educadora, decidiu prestar concurso para a Polícia Civil e começou a trabalhar como agente em 1999. “Tinham 700 vagas e sabia que uma delas era minha. Na mesma época, consegui passar para a Polícia Federal, mas o meu sonho era entrar na força de segurança do DF”, afirma.
Como agente de polícia, Jane almejava mais e decidiu ser delegada. Se formou em direito e mergulhou nos livros novamente. Durante dois anos, estudou oito horas por dia, incluindo fins de semana e feriados, para assumir o cargo. “Se eu ficasse me lamentando, não teria conquistado nada. O mundo não liga para você, e a competição é para todo mundo.” Ela relata que, depois que conquistou a função, em 2011, as portas começaram a se abrir.
Palestras
Ao mesmo tempo que é vaidosa, Jane transmite humildade. Ela chega à delegacia maquiada, com o cabelo impecável e as unhas feitas. Mas carrega na mão o café da manhã: um pão de sal dividido ao meio, ainda na embalagem, e um copo de suco. No trajeto até sua sala, cumprimenta pessoas que aguardam para registrar ocorrências, funcionários da limpeza e agentes no balcão. Hoje, ela usa o próprio carisma para tentar se aproximar da comunidade.
Por ser de origem humilde, mulher e negra, Jane tomou para si a missão de levar informação à população do Paranoá — lugar onde trabalha — e de outras áreas do Distrito Federal. Durante a semana, ela faz de quatro a cinco palestras em instituições de ensino, além de outras entidades, como o Centro de Referência de Assistência Social (Cras). “As pessoas mais simples acabam me colocando nesse lugar de referência. Escuto muita gente que diz se inspirar em mim, que consegui superar as dificuldades”, destaca.
O principal tema tratado por Jane nas palestras é a violência contra o público feminino. “Muitas mulheres sofrem violência e não têm consciência disso. Além disso, a maioria não sabe o conteúdo da Lei Maria da Penha e elas precisam dessas informações”, comenta. A delegada almeja deixar uma marca de força na sociedade e, por isso, garante que precisa se reafirmar todos os dias para ser reconhecida. “Nunca me vitimizei, me senti inferior ou duvidei que conseguiria. Hoje, tenho certeza de que o nosso lugar é onde a gente quiser.”
Especial
Para marcar o Mês da Consciência Negra, a série Histórias de consciência é publicada ao longo de novembro e presta homenagem a mulheres e homens negros que ajudam a construir uma Brasília justa, tolerante e plural. Todos os perfis deste especial e outras matérias sobre o tema podem ser lidos no site www.correiobraziliense.com.br/historiasdeconsciencia.
Por Walder Galvão
Fonte: Correio Braziliense